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Carta Doutrinal "Aspectus Evangelizationis" | Sacra Congregatio Sanctus Officium

DOM EUGÊNIO MARIA CARDEAL PACELLI
POR MERCÊ DE DEUS E DA SANTA SÉ APOSTÓLICA
 CARDEAL PROTO-DIÁCONO DI SANCTAE SABINAE ALL'ALVENTINO
PREFEITO DA SACRA CONGREGAÇÃO DO SANTO OFÍCIO


A todos que esta lerem,
graça e paz de Nosso Senhor Jesus Cristo!

CARTA DOUTRINAL SOBRE ALGUNS ASPECTOS DA EVANGELIZAÇÃO


I. Introdução

1. Enviado pelo Pai a anunciar o Evangelho (cf. Mc 1, 14), Jesus Cristo convida todos os homens à conversão e à fé (cf. Mc 1, 14-15), confiando aos Apóstolos, depois da sua ressurreição, a continuação da sua missão evangelizadora (cf. Mt 28, 19-20; Mc 16, 15; Lc 24, 4-7; Act 1, 3): «como o Pai me enviou também Eu vos envio» (Jo 20, 21; cf. 17, 18). Na verdade, através da Igreja, Ele quer atingir cada época da história, cada lugar da terra e cada âmbito da sociedade, chegar a cada pessoa, para que haja um só rebanho e um só pastor (cf. Jo 10, 16): «Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura. Quem acreditar e for baptizado será salvo, mas quem não acreditar será condenado» (Mc 16, 15-16).

Com efeito, os Apóstolos, «movidos pelo Espírito, convidavam todos a mudar de vida, a converter-se e a receber o Batismo», porque a «Igreja peregrinante é necessária à salvação». É o próprio Senhor Jesus Cristo que, presente na sua Igreja (cf. Mt 28, 20), precede a obra dos evangelizadores, a acompanha e a segue, fazendo frutificar o trabalho. Aquilo que aconteceu nas origens do cristianismo continua ao longo de toda a história.

No início do terceiro milenio, ressoa, ainda no mundo, o convite que Pedro, juntamente com o irmão André e os primeiros discípulos, escutou do próprio Jesus: «faz-te ao largo e lançai as redes para a pesca» (Lc 5, 4). E, depois do milagre de uma grande pesca, o Senhor anunciou a Pedro que se tornaria «pescador de homens» (Lc 5, 10).

2. O termo evangelização tem um significado muito rico. Em sentido amplo, esse resume toda a missão da Igreja, porque toda a sua vida consiste em realizar a traditio Evangelii, o anúncio e a transmissão do Evangelho, que é «força salvadora de Deus para todo aquele que acredita» (Rm 1, 16) e que em última essência se identifica com o próprio Cristo (cf. 1 Cor 1, 24). Por isso, assim entendida, a evangelização tem como destinatária toda a humanidade. Em todo o caso, evangelizar significa não só ensinar uma doutrina, mas anunciar Jesus Cristo com palavras e ações, isto é, fazer-se instrumento da sua presença e ação no mundo.

«Toda a pessoa tem o direito de ouvir a ‘boa nova’ de Deus que se revela e se dá em Cristo, para realizar plenamente a sua própria vocação». Trata-se de um direito conferido pelo próprio Senhor a cada pessoa humana, pelo qual cada homem e cada mulher pode verdadeiramente dizer com São Paulo: Jesus Cristo «amou-me e entregou-se a si mesmo por mim» (Gal 2, 20). A este direito corresponde um dever de evangelizar: «pois, anunciar o evangelho não é para mim motivo de glória. É antes uma necessidade que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!» (1 Cor 9, 16; cf. Rom 10, 14). Compreende-se, então, como toda a atividade da Igreja tenha uma essencial dimensão evangelizadora e nunca deve ser separada do compromisso para ajudar a todos a encontrar Cristo na fé, que é o objectivo primário da evangelização: «a questão social e o Evangelho são entre si inseparáveis. Onde dermos aos homens só conhecimentos, habilidades, capacidades técnicas e instrumentos, ali levaremos muito pouco».

3. Todavia, hoje verifica-se uma crescente confusão que induz muitos a deixar inaudível e inoperante o mandato missionário do Senhor (cf. Mt 28, 19). Muitas vezes pensa-se que toda a tentativa de convencer os outros em questões religiosas seja um limite posto à liberdade. Seria lícito somente expor as próprias ideias e convidar as pessoas a agir segundo a consciência, sem favorecer uma conversão a Cristo e à fé católica. Diz-se que basta ajudar os homens a serem mais homens ou mais fiéis à própria religião, que basta construir comunidades capazes de trabalhar pela justiça, a liberdade, a paz, a solidariedade. Além disso, alguns defendem que não se deveria anunciar Cristo a quem O não conhece, nem favorecer a adesão à Igreja, pois seria possível ser salvos mesmo sem um conhecimento explícito de Cristo e sem uma incorporação formal à Igreja.

Perante tais problemáticas, a Congregação para a Doutrina da Fé julgou necessário publicar a presente Nota. Essa, pressupondo o conjunto da doutrina católica sobre a evangelização, amplamente tratada no Magistério de Paulo VI e de João Paulo II, tem a finalidade de esclarecer alguns aspectos da relação entre o mandato missionário do Senhor e o respeito da consciência e da liberdade religiosa de todos. Trata-se de aspectos que têm importantes implicações antropológicas, eclesiológicas e ecumenicas.

II. Algumas implicações antropológicas

4. «Esta é a vida eterna, que te conheçam como o único Deus verdadeiro e aquele que enviaste, Jesus Cristo» (Jo 17, 3): Deus deu aos homens a inteligência e a vontade, para que livremente o pudessem procurar, conhecer e amar. Por isso, a liberdade humana é um recurso e um desafio oferecidos ao homem por Aquele que o criou. Uma oferta dirigida à sua capacidade de conhecer e amar aquilo que é bom e verdadeiro. Nada como a procura do bem e da verdade põe em jogo a liberdade humana, solicitando-a a uma adesão tal que compromete os aspectos fundamentais da vida. De modo particular é o caso da verdade salvífica, que não é só objecto do pensamento, mas algo que afeta toda a pessoa – inteligência, vontade, sentimentos, atividades e projetos – quando essa adere a Cristo. Tal procura do bem e da verdade é já obra do Espírito Santo, que abre e dispõe os corações para o acolhimento da verdade evangélica, segundo a conhecida afirmação de S. Tomás de Aquino: «omne verum a quocumque dicatur a Spiritu Sanctu est». É, por isso, importante valorizar esta acção do Espírito, que cria afinidade e aproxima os corações à verdade, ajudando a inteligência humana a maturar em sapiência e em abandono confiante ao verdadeiro.

V. Conclusão

5. A ação evangelizadora da Igreja não pode ser menor, pois nunca lhe faltará a presença do Senhor Jesus na força do Espírito Santo, segundo a sua própria promessa: «Eu estou convosco todos os dias, até ao fim do mundo» (Mt 28, 20).

Os relativismos e irenismos de hoje em âmbito religioso não são um motivo válido para descurar este trabalhoso mas fascinante compromisso, que pertence à própria natureza da Igreja e é «sua tarefa primária». «Caritas Christi urget nos – o amor de Cristo nos impele» (2 Cor 5, 14): testemunha-o um grande número de fiéis que, levados pelo amor de Jesus tiveram, ao longo da sua história, iniciativas e obras várias para anunciar o Evangelho, a todas as pessoas e em todos os âmbitos da sociedade, como aviso e convite perene a todas as gerações cristãs a cumprirem com generosidade o mandato de Cristo. Por isso, como recorda o Papa Bento XVI, «o anúncio e o testemunho do Evangelho são o primeiro serviço que os cristãos podem dar às pessoas e à humanidade, chamados a comunicar a todos o amor de Deus, que se manifestou plenamente no único Redentor do mundo, Jesus Cristo». O amor que vem de Deus une-nos a Ele e «transforma-nos em um Nós, que supera as nossas divisões e nos faz ser um só, até que, no fim, Deus seja “tudo em todos” (1 Cor 15, 28)».

Todavia, hoje formulam-se, com maior frequência, interrogações sobre a legitimidade de propor aos outros — a fim que possam aderir por sua vez — aquilo que é verdadeiro para si. Muitas vezes, tal proposta é vista como um atentado à liberdade dos outros. Esta visão da liberdade humana, desvinculada da sua referência inseparável da verdade, é uma das expressões «daquele relativismo que, nada reconhecendo como definitivo, deixa sozinho, como última medida, o próprio eu com as suas decisões, e sob a aparência da liberdade torna-se para cada um uma prisão». Nas diversas formas de agnosticismo e relativismo presentes no pensamento contemporâneo, «a legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais difusos, no contexto atual, de desconfiança na verdade. E esta ressalva vale também para certas concepções de vida originárias do Oriente: é que negam à verdade o seu carácter exclusivo, ao partirem do pressuposto de que ela se manifesta de modo igual em doutrinas diversas ou mesmo contraditórias entre si». Se o homem nega a sua fundamental capacidade da verdade, se é céptico sobre a sua faculdade de conhecer realmente aquilo que é verdadeiro, ele acaba por perder o que, de facto, pode fascinar a sua inteligência e encantar o seu coração.

Dado e passado na Prefeitura da Sacra Congregação do Santo Ofício, no dia 19 do mês de Dezembro, Ano Santo Mariano de 2022, primeiro do pontificado de Sua Santidade Lúcio.

+ Eugênio Maria Cardeal Pacelli
Prefeito da Sacra Congregação do Santo Ofício